Por Heloisa G. Salgado e Paula Cayoni com contribuições de Vinicius Picanço
Desafios como pobreza, educação ou mudanças climáticas envolvem sistemas dinâmicos e complexos que resistem a soluções tradicionais. Muitos projetos socioambientais enfrentam dificuldades para gerar impacto sustentável porque tratam os sintomas — os “eventos observáveis” na superfície — sem considerar os padrões, estruturas e modelos mentais mais profundos que alimentam esses problemas.
Imagine um iceberg. A ponta que emerge da água representa os eventos observáveis, como altos índices de evasão escolar ou baixa renda per capita. Esses eventos são resultados diretos de padrões subjacentes — tendências de longo prazo que perpetuam o problema. Ainda mais abaixo, encontramos as estruturas (normas, políticas e recursos) e, no fundo, os modelos mentais — crenças e valores que sustentam o sistema.
Essa metáfora explica por que intervenções tradicionais muitas vezes não resultam em transformação estruturante: elas lidam com a ponta do iceberg. Por exemplo, oferecer capacitações desconectadas da realidade de mercado local pode gerar empregos temporários, mas não resolve os desafios estruturais ou culturais que dificultam a empregabilidade no longo prazo, ou eventualmente gerar excesso de oferta incompatível com demandas produtivas.
Modelo Iceberg de Inovação Social | Otto Scharmer
Além disso, se não visualizarmos o todo para tomar uma decisão – ela pode desencadear efeitos imprevistos ou indesejados.
Fonte: STERMAN, John. MIT System Dynamics.
E por que isso acontece? Os incentivos geralmente recompensam resultados de curto prazo. Quando algo dá errado, tendemos a culpar as externalidades, ignorando que o verdadeiro problema está na falta de compreensão ou consideração do sistema como um todo.
Para lidar com problemas complexos, é essencial mudar o modelo mental e adotar uma perspectiva de longo prazo. Diferentemente de desafios lineares, esses problemas não seguem um padrão de começo, meio e fim. A abordagem requer ação estratégica em pontos de acupuntura, onde o impacto pode ser amplificado.
Como bem destacou Annie Duke: “I can’t know what decisions to make only because I know where I want to be, I need to know where I am now” – “(Não posso tomar decisões apenas sabendo onde quero chegar; é crucial entender onde estou agora)” – na tradução livre para o português.
Instrumento e ferramentas que apoiam o pensamento sistêmico:
Existem diversas abordagens de Pensamento Sistêmico aplicadas ao impacto. Darius Pollok, do International Alumni Center (IAC) de Berlim, adota uma perspectiva voltada à formação de redes catalíticas. Já o Skoll Centre, em Oxford, categoriza diferentes formas de intervenção sistêmica, como: Empower Changemakers, Scaling Up, Coordinating Actors, Exploring and Experimenting e Scaling Deep.
No Quintessa, adotamos a linha de Dinâmicas de Sistemas do MIT, capitaneado pelo Jay Forrester, pelo John Sterman e bem disseminado por Donella Meadows, em seu livro “Pensando em Sistemas”. O livro traz um detalhamento de “Pontos de Alavancagem: locais estratégicos para intervir em um sistema” ferramenta que ajuda a identificar onde e como intervir em um sistema para atingir resultados desejados. Assim como no modelo do Iceberg, ela revela camadas mais profundas do sistema — porém, com uma abordagem mais técnica e orientada à ação.
Os Pontos de Alavancagem variam desde elementos mais simples, como números e parâmetros (subsídios, impostos, padrões), até intervenções profundas, como alterar o paradigma e modelos mentais de um sistema. A escolha do ponto de intervenção influencia diretamente o tipo de resultado esperado, sendo que os pontos mais profundos têm um impacto mais transformador.
Adaptação do livro “Pensando em Sistemas”, Donella Meadows.
A metodologia de Dinâmica de Sistemas foi desenvolvida pelo MIT, com foco no Causal Loop Diagram (CLD). Esse tipo de diagrama possibilita mapear como diferentes variáveis interagem dentro de um sistema, identificando ciclos de retroalimentação que podem amplificar ou mitigar problemas.
Fonte: FourWeekMBA plataforma especializada em modelos de negócios, estratégias de crescimento e conceitos de economia.
Por exemplo, no contexto de inclusão socioprodutiva, um CLD pode mostrar como o baixo acesso a crédito impacta a produtividade de pequenos empreendedores, criando um ciclo de exclusão econômica.
O vídeo “The Systems Approach Explained“, produzido pela Descola, usa uma metáfora poderosa para ilustrar a importância de adotar uma visão sistêmica. Ele compara a situação de um grupo de pessoas cegas tentando descrever um elefante: cada uma toca apenas uma parte — como a tromba, as patas ou a cauda — e, com base nisso, acredita entender o animal como um todo. Porém, apenas ao unir todas essas percepções é possível compreender a verdadeira natureza do elefante.
Essa metáfora destaca que, ao focarmos em partes isoladas de um problema ou sistema, perdemos a visão completa e integrada. Aplicada ao contexto de negócios ou resolução de problemas complexos, o recado é bastante importante: é essencial considerar as interconexões e a totalidade dos elementos envolvidos para gerar soluções mais eficazes e sustentáveis.
A abordagem sistêmica na prática:
Entre 2021 e 2023, o Quintessa trabalhou com sete secretarias municipais de educação atuando diretamente nas defasagens geradas pela pandemia nas matérias de Matemática e Português no ensino público. O programa integrou diagnósticos detalhados de educação, reuniu e contou com a colaboração de multi-stakeholder, além de contar com tecnologias educacionais para enfrentar os desafios da defasagem de aprendizagem.
O Modelo Pedagógico foi desenhado para abordar as lacunas de aprendizagem de maneira holística e centrada no estudante. Ele orientou práticas pedagógicas ao longo de oito eixos sistêmicos, como:
- Uso de avaliações diagnósticas para identificar as necessidades dos estudantes e adaptar intervenções.
- Adequação curricular com foco nas prioridades de aprendizagem.
- Formações contínuas para professores e gestores, promovendo uma pedagogia colaborativa e contextualizada.
O programa reuniu secretarias de educação, organizações formadoras, implementadoras e startups educacionais (edtechs). Cada ator teve um papel específico:
- Edtechs: Ofereceram soluções tecnológicas como plataformas de aprendizagem gamificada e gestão de dados educacionais.
- Organizações formadoras: Capacitaram professores e gestores para implementar práticas inovadoras.
- Secretarias de educação: Participaram ativamente do planejamento e adaptação das soluções às realidades locais.
Um dos grandes diferenciais foi o uso pioneiro do Marco Legal das Startups (MLS) no setor público educacional. Essa ferramenta permitiu que secretarias testassem tecnologias educacionais antes da contratação definitiva. Por exemplo:
- A plataforma Jovens Gênios foi integrada como ferramenta de gamificação para matemática, alcançando picos de 90% de engajamento dos estudantes em Domingos Mourão (PI).
O programa incluiu trilhas formativas intensivas para educadores e gestores, com destaque para:
- Comunidades de prática, onde professores e gestores trocavam experiências e aprendizados.
- Treinamentos para uso de dados e tecnologias educacionais, garantindo autonomia para continuidade das ações.
Diferente de programas focados em contraturnos ou ações pontuais, o impulsiONar operou no turno regular das aulas. Isso garantiu que as mudanças atingissem todos os estudantes e se integrassem ao cotidiano escolar.
O impacto foi mensurado em várias dimensões:
- Acadêmico: Um avanço médio de 5,5 pontos em Matemática e 0,6 em Língua Portuguesa no SAEB.
- Gestão educacional: 83% dos gestores declararam intenção de manter as práticas do programa.
- Tecnológico: Edtechs como Portabilis e Aprimora foram fortalecidas, e novas ferramentas surgiram a partir do programa.
A integração de tecnologia, formação continuada, adaptação local e articulação multissetorial foi a chave para o sucesso do impulsiONar, que se destaca como um exemplo prático de como intervenções sistêmicas podem transformar a educação pública. E ilustra o Quintessa desenvolve uma visão integrada dos sistemas, identificando alavancas críticas e interdependências que ajudam a transformar o sistema de forma contínua e duradoura.
Articulação multissetorial e estrutura de governança coordenada pelo Quintessa no impulsiONar.
“Muitas vezes, buscamos explicações exógenas para os problemas e fenômenos que enfrentamos, especialmente aqueles que desafiam o nosso entendimento e cujas tentativas de solução fracassaram no passado. Quando passamos a ter um olhar orientado aos sistemas, buscamos explicações dentro do sistema, pois entendemos que a estrutura de um sistema – suas partes e as relações entre essas partes – determinam os possíveis comportamentos desse sistema, tanto os desejáveis quanto os indesejáveis. Aos indesejáveis, damos o nome de problemas. Daí a necessidade de termos um olhar sistêmico para gerenciar problemas complexos, típicos de sistemas humanos e socioecológicos.
O impulsiONar é definitivamente um grande exemplo de como devemos buscar respostas e alavancas nos mecanismos do sistema: as práticas educacionais, os processos, os marcos e aspectos regulatórios, os stakeholders e o espaço de governança no qual o fenômeno se desenrola. Resolver a defasagem em disciplinas básicas do ensino público brasileiro é um problema complexo que precisa ser compreendido no detalhe e governado ao longo do tempo”. Vinicius Picanço | Professor assistente do Insper e Honorary Research Fellow na University of Strathclyde (Reino Unido), membro do Conselho do The Good Food Institute e pesquisador afiliado do Food and Retail Operations Lab (FaROL) no MIT.
A abordagem sistêmica nos desafia a abandonar soluções lineares e pensar de forma integrada. Ela nos lembra que nenhum ator isolado — seja uma organização, governo ou empresa — consegue transformar realidades complexas sozinho. É por isso que, no Quintessa, nosso trabalho não termina com a implementação de um projeto: buscamos deixar um legado de transformação contínua e colaborativa.
Os mais de 500 empreendedores de impacto que já aceleramos, com uma taxa de sobrevivência de 93%, refletem o poder dessa visão. Acreditamos que, ao enxergar o todo e agir com estratégia, podemos enfrentar até os desafios mais complexos de forma eficaz e duradoura.
A solução para problemas complexos não está em programas fragmentados ou ações de curto prazo, mas em intervenções que enxergam o todo e trabalham para transformar sistemas inteiros. Seja na educação, na inclusão socioprodutiva ou em qualquer outro campo, é possível gerar impactos reais e sustentáveis ao focar no “iceberg” completo e agir com estratégia.