Os temas da sustentabilidade corporativa e ESG têm ocupado os debates e notícias do universo de negócios nos últimos meses, mas como chegamos até aqui? Quais foram as principais mudanças no entendimento do conceito de sustentabilidade e quais os fatores que impulsionaram a tomada de consciência por parte das empresas?
Convidamos Ricardo Young, empresário, professor, ambientalista e político brasileiro, que há anos acompanha o tema para um bate papo sobre a evolução das iniciativas adotadas pelas empresas, o ganho de consciência dos gestores e os fatores chave para a concretização dessa nova forma de fazer negócios que leva em conta a solução dos desafios sociais e ambientais centrais da sociedade.
Você pode acessar a entrevista na íntegra em formato de áudio e vídeo, ou na leitura do texto abaixo.
02:47 | Você acompanha o tema de Sustentabilidade dentro das empresas há anos. Qual acredita serem os principais marcos que moldaram o setor para como está hoje?
O primeiro marco importante são as empresas do Vale do Silício na década de 80, que começaram a colocar um novo mindset na forma de organização das empresas. Willis Harman, um engenheiro eletrônico de Stanford, percebeu essa nova dinâmica e trouxe, em seu livro “Global Mind Change”, que as empresas eram interdependentes e portanto responsáveis pelo todo. Ele fundou também a World Business Academy, que trabalha o papel das empresas na solução dos desafios globais.
A partir disso começaram vários movimentos, por exemplo o Pensamento Nacional das Bases Empresariais, que trouxe à tona a questão do empresário cidadão. Assim começou a nascer o movimento da responsabilidade social, que foi um passo à frente da ideia de filantropia. No Brasil, por volta de 98 nasceram as primeiras empresas de responsabilidade social, como o Ethos e o CEBDS.
Começou-se então uma discussão de métricas: a bolsa de NY lança o Sustainability Index em 99, em seguida nasce o Global Compact (Pacto Global) e o GRI (Global Reporting Initiative), que foi a primeira organização mundial multistakeholder para criar novas formas de reportar sustentabilidade.
O ano 2000 começou a organizar os conhecimentos necessários para que as empresas começassem a incorporar na gestão os parâmetros de responsabilidade social. Mas foi em 2006/2007 que houve uma grande inflexão, quando começou-se a divulgar as primeiras questões relacionadas ao aquecimento global, como o filme do Al Gore, o primeiro relatório do IPCC e o Relatório Stern, que foi uma bomba atômica, mostrando as consequências econômicas e financeiras em não se cuidar do aquecimento global.
A partir daí inclui-se na responsabilidade social a dimensão ambiental, e começamos a falar sobre responsabilidade socioambiental. Surge a ideia de consumo consciente, pegada ecológica e uma nova onda de iniciativas incorporando essa a dimensão. Nesse momento, a questão social já estava bem marcada pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio lançados pela ONU em 2000.
Em 2009, em Copenhagen, houve um grande momento de consciência da comunidade global em torno da questão ambiental com o primeiro lançamento de uma proposta de economia verde. Desse momento até 2015 foi uma fase de grandes ajustes, que resultaram na COP de Paris e nos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) – que de todas as iniciativas multilaterais, talvez seja aquela que melhor engloba as três dimensões: social, econômica e ambiental.
De 2015 pra cá, finalmente, quase 40 anos depois do Vale do Silício, começamos a ter a tal mudança de mindset. O setor empresarial começa a perceber as falhas fundamentais do capitalismo neoliberal e começa a entender que uma nova mudança de mentalidade é necessária. Houve uma grande aceleração nos últimos anos, acentuada agora pela pandemia.
Em 2020 o Fórum Econômico Mundial coloca cada vez mais a questão ambiental como risco, trazendo o Capitalismo de Stakeholders, e o Larry Fink da BlackRock fala das necessidades de mudar os critérios de investimentos, quando surge o boom do ESG, que é a governança socioambiental.
O ESG está sendo visto como uma coisa nova, mas o que tem realmente de novo é a necessidade de uma mudança radical da cultura empresarial na direção de uma visão sistêmica do seu impacto no meio ambiente, na sociedade e na economia.
10:11 | E quais são os fatores que permitiram esses “saltos” de tomada de consciência? Tem a ver com os próprios instrumentos que viabilizaram mensurar a dimensão econômica, ou as consequências ficarem cada vez mais visíveis, como o desmatamento, a pandemia…
As mudanças vêm em ciclos de mudança histórica: na década de 70 para 80, o modo industrial sofreu uma ruptura com a tecnologia do vale do silício e começou a recolocar várias questões sobre gestão das organizações. Já década de 90, com a globalização, explicitou as desigualdades e assimetrias entre os países. Para ter uma ideia, até a década de 80 a Alemanha considerava legal as empresas alemãs corromperem as autoridades públicas dos países em desenvolvimento.
Nessa época a desigualdade e a responsabilidade das multinacionais ficou exposta e os ODM (Objetivos de Desenvolvimento do Milênio) colocaram pela primeira vez a questão da desigualdade em escala global. Depois vem a era da consciência de que mudança climática é uma realidade que vai ter custos sociais e ambientais gravíssimos se a mudança não for feita, que começa a partir de 2009 e se acentua em 2015.
Agora o futuro já chegou, então é menos discutir o “se”, e mais “como e o quanto antes”. Discutir quais recursos temos para lidar com a questão da desigualdade aguda, das mudanças climáticas que estão evidentes e criar outros níveis de cooperação na sociedade.
Por outro lado, a nossa política também se deteriorou muito em função dessas tendências que foram se sobrepondo mas não foram metabolizadas numa nova visão de sociedade. Se as empresas hoje estão conseguindo metabolizar tudo isso em forma de ESG, a sociedade ainda não conseguiu metabolizar isso sob o ponto de vista do seu funcionamento democrático, das suas instituições.
14:18 | Quais as diferenças e similaridades para a sustentabilidade dos anos 90 e o ESG de 2020?
Tem uma diferença fundamental no entendimento do que é sustentabilidade e do que é governança socioambiental.
Na compreensão da sustentabilidade, a grande mudança é que não basta ser sustentável, temos que regenerar o planeta. Por exemplo, estamos vivendo uma crise hídrica, estamos muito acima das emissões que vão segurar o aumento da temperatura em 1.5°C, nosso nível de emissões está levando a temperatura a elevar 3°C nos próximos 20 anos. Então ser sustentável é somente o “ticket de entrada no jogo”, mas não basta. Temos que descobrir rapidamente formas regenerativas de serviços ambientais.
O ser humano é parte de um sistema planetário de vida e é o único que pode efetivamente interagir de forma a tornar esse sistema mais eficiente.
Os conceitos de desenvolvimento regenerativo, restaurativo e restauração produtiva, economia donut e economia circular são o que há de novo, um upgrade no conceito de sustentabilidade.
No entendimento de gestão e governança socioambiental, o que muda é que nós que fomos formados para gerir empresas, no geral em Administração, Economia e Engenharia, fomos ensinados a olhar as organizações como máquinas produtoras de resultados e entender quais são as variáveis que interagem no processo de gestão e otimizá-las de forma a dar mais resultados. Mas nós não temos uma formação em Sociologia, por exemplo, não sabemos quais são os vetores da desigualdade social, do desequilíbrio ambiental, que são saberes complexos, não são banais.
Então quando falamos de ESG, estamos dizendo para os gestores das empresas: além de ser bom em gestão, você tem que entender os impactos sociais da sua cadeia produtiva, quais são as externalidades no processo produtivo. Você emite gases do efeito estufa, produz resíduos sólidos, tem uma pegada hídrica maior do que deveria ter… São saberes que os gestores geralmente não sabem.
Nós de uma certa forma somos semi-analfabetos diante dos desafios da gestão hoje, porque saberes essenciais do nosso desempenho não são ainda disseminados no meio empresarial.
A boa notícia é que isso está mudando e já vemos, por exemplo, algumas empresas começaram a bonificar seus diretores em função de resultados socioambientais.
Na questão da desigualdade, por exemplo, ao entender que um dos fatores importantes na desigualdade é o déficit educacional, e que as empresas podem fazer muito mais do que pensam para mitigar esse déficit, pode-se criar um programa sólido de capacitação interna ou uma parceria com uma instituição de ensino superior, na forma de bolsas e pesquisas, e já estar contribuindo muito para reduzir a desigualdade social. Isso são os novos saberes que estão sendo demandados para os gestores.
20:33 | Uma das frentes que temos no Quintessa é a de Programas em Parceria, e muitas vezes essas pautas não vem com o nome “impacto”. Costumo refletir sobre qual a melhor linguagem para utilizar, que dialogue com os mesmos conceitos que a pessoa está acostumada a usar. Quando falo, por exemplo, em questões de educação, muitas vezes é mais palatável, como início de diálogo, relacioná-la com produtividade e retenção de talentos, e ir aprofundando. Como você vê as empresas incorporando essas questões?
Esse é um ponto chave. Em geral, as áreas de compras e RH são consideradas secundárias. Mas se a área de compras não estiver instrumentada para poder entender as externalidades dos fornecedores da cadeia produtiva e tomar decisões baseadas em impacto socioambiental e não somente em preço, ela irá comprar errado.
Um exemplo é o evento do Carrefour, que sentimos muito sobre o que aconteceu, mas foi tipicamente a contratação de um terceirizado que não estava alinhado com os valores da empresa e causou uma consequência brutal. A área de compras é absolutamente essencial, e deve-se estabelecer o que essa área deve ou não deve fazer, independentemente de preço.
A mesma coisa acontece com a área de RH. Nós falamos da importância da Diversidade e Inclusão, mas geralmente as demandas chegam da seguinte forma: “contrate alguém para a área de suprimentos para ontem”, e o RH atende a demanda da forma que já está estabelecida. Quando na verdade a orientação deveria ser: “contrate, dentro das melhores políticas de inclusão e diversidade, para ontem, uma pessoa para a área de suprimentos”.
São coisas que parecem pequenas, mas na verdade são desvios que estão no princípio dessa disfuncionalidade que as empresas têm com esses temas, porque as áreas que são decisivas para que a empresa definitivamente se engajem não são tratadas como decisivas.
20:46 | Existe também uma visão sobre o tempo para mensurar o resultado gerado: de ser mais adequado ir mostrando o resultado econômico positivo das ações de impacto no médio/longo prazo, pois uma visão curto prazista do “mês a mês” talvez não revele de forma tão visível esse resultado. Como encarar esses resultados?
Essa é uma doença do nosso tempo: artificializar de tal forma processos e tempos de maturação que a gente acaba destruindo as coisas no processo. As empresas, ao privilegiarem o curto prazo em relação às mudanças de longo prazo, acabam se sabotando no longo prazo. Nós não entendemos o tempo da natureza, que precisamos de ciclos, que o equilíbrio está na medida que conhecemos os processos e utilizamos os recursos da natureza na mesma medida que podem se regenerar. Queremos tudo para agora, o máximo, e destruímos a própria capacidade de regeneração da natureza.
Essa é a doença da nossa civilização: não entender a natureza real do tempo, processos de maturação na dimensão humana, da natureza e das instituições sociais e políticas.
25:46 | Quais conselhos você daria para uma empresa que deseja iniciar agora a olhar para o assunto? Como começar hoje, mas não esbarrar nos receios como de ser acusada de green washing? E o que não fazer?
Não acredite que basta o exemplo vir de cima. As pessoas acham que porque o C-Level decide uma coisa, a mudança vai ocorrer por “varinha mágica”. O engajamento da presidência, do conselho e dos executivos é importante, mas não é suficiente, porque se o restante da organização não tiver imbuído dos mesmos valores, acaba sendo disfuncional, como comentei nos exemplos de Compras e RH.
Ao mesmo tempo que precisa haver um alinhamento estratégico do conselho e da direção executiva, precisam ser trabalhados os valores e o propósito da organização na base.
Como diz Simon Longstaff, do centro de ética empresarial da Austrália, todo mundo precisa ser capaz de responder porque faz ou porque não faz alguma coisa em função da ética e dos valores: por que eu comprei mais caro ou mais barato? Por que contratei essa pessoa e não aquela? Por que eu disse sim/não para essa oportunidade de negócio? Todas elas precisam ter critérios éticos incluídos no processo de decisão, porque se não há valores, não há discernimento.
Com você vai discernir se está fazendo certo ou errado se você não tem as razões do certo e do errado? Isso é a ética, isso são os valores e propósito. É por isso que a organização não pode considerar a questão da ética como secundária. Discutir os valores da empresa a cada 2 ou 3 anos, realinhar os propósitos, reunir as pessoas para discutir a visão de futuro e o sonho coletivo é fundamental para conseguir esse alinhamento de ESG.
Outro ponto é instrumentar as empresas nessas ferramentas. Sabemos que compliance é importante, mas só é importante se for resultado de uma cultura de integridade e não imposto de cima para baixo. As pessoas se sentem oprimidas por sistemas de compliance se elas não participam do processo.
Minha sugestão é que antes de tudo a empresa tenha um alinhamento de valores, partindo da reflexão sobre quais são eles: “Nós achamos a questão da desigualdade importante ou não? A transparência e confiança são importantes para a empresa? A questão do meio ambiente é importante?” São várias questões balizadoras de comportamento, são elementos que dão critérios para decisões.
Se os valores não forem muito bem delineados e introjetados em cada um, como podemos esperar que as decisões do agregado caminhem na direção correta?
Não é à toa que estamos vendo vários movimentos surgindo, como Capitalismo Consciente, Sistema B, além das organizações tradicionais como Ethos, CEBDS e GRI, mostrando que essa questão do propósito e dos valores é essencial para o ESG.
31:54 | Essa fala é muito necessária, pois é um assunto novo, que se abordado da forma antiga, pode virar um mero checklist. Para quem trabalha na área e está por dentro, sabe que isso é muito mais uma forma de enxergar e agir que requer profundidade e parte de um lugar de reflexão de como eu quero agir, e não é uma lista de “pode e não pode”.
Tudo isso não é fácil. Tem aquela famosa frase que gosto bastante: ”seja você a mudança que quer ver no mundo”, e só praticar isso já mostra que não é fácil. Por exemplo, se você é contra os maus tratos de animais mas come carne, entra em um dilema: “tenho que abrir mão de comer carne? Quem sou eu nessa mudança?”
Esses são dilemas que vivemos no dia a dia na esfera pessoal, mas são os mesmos dilemas que as empresas vivem. Acho que ninguém deve ser tirano de si mesmo, mas sim trabalhar esses dilemas e buscar um propósito, por exemplo, de comer outra fonte de proteína. Buscar essa coerência em função do propósito e criar condições e caminhar para a mudança é um dever.
Essa mudança não vem da noite para o dia, as empresas não mudam da noite para o dia. A Natura, por exemplo, não começou ontem. Eu acompanhei esse processo e vejo que são decisões tomadas no final da década de 90 que estão dando seus melhores resultados agora, 20 anos depois. Então se você quer ser uma Natura, comece desenhando seu propósito cedo, porque leva tempo. Lidar com contradições vai aumentando sua consciência e sua integridade, ninguém é íntegro de véspera, e em momentos de crise como a que estamos vivendo é que sua integridade é provada.
Não é uma linha de chegada, é uma forma de caminhar.
35:50 | Você está liderando um curso que forma conselheiros dentro da temática de ESG. Observando os alunos e as dúvidas que surgem, quais você entende que são os pontos chave para que tenhamos mais empresários engajados e atuando dessa forma mais ética, íntegra e sustentável?
A postura em geral que as pessoas têm despertado é a da humildade. Os empresários são muito empoderados, têm enormes responsabilidades, mas se não tivermos humildade para reconhecer nossos limites e o quanto temos que aprender, não vamos aprender. E como comentei no início, estamos em um momento que precisamos aprender muito.
Outro aspecto é o pensamento sistêmico. Somos parte de um todo interdependente e precisamos entender como ele funciona e como cada um pode atuar, sabendo que sua atuação também é uma resultante da atuação de todos os outros. Se a dimensão social e ambiental interfere nos mercados, a sua atuação nos mercados pode produzir resultados socioambientais.
Ainda assim, o maior desconforto que vejo, principalmente nos homens, ainda é a sensação de que “eu pouco sei” ou de que “tudo que eu sei até agora serve muito pouco para o futuro”, então todo seu processo de autoconfiança e autopercepção começa a se alterar. Isso cria um desconforto porque você precisa se adaptar a essa nova realidade e não sabe como se adaptar, principalmente em uma idade mais madura, o que eu vejo como o estado de perplexidade que toma conta dos altos executivos.
Poucos até agora negam a necessidade do ESG, mas o grande desafio é entender como caminhar nessa direção sem “criar muita confusão, sem turvar a água”. Por fim, estou nessa vida desde o final da década de 80 e vejo que o engajamento é muito maior do que há 30 anos. Creio que de todo esse período, seja o que as pessoas mais estão abertas e dispostas a se engajar na mudança, então minha visão geral é otimista.
Sobre Ricardo Young
Ricardo Young Silva é empresário, professor, ambientalista e político brasileiro.
Young também é fundador da rede de escolas de idiomas Yázigi e da Casa Amarela, foi presidente do Instituto Ethos e da Associação Brasileira de Franchising e vereador do município de São Paulo, eleito nas eleições de 2012, pela Rede Sustentabilidade. Foi integrante do grupo de empresários que iniciou no Brasil a disseminação do conceito da responsabilidade social empresarial com uma nova dimensão de negócios. Pioneiro na luta pela sustentabilidade, foi um dos disseminadores em 2009 da “Carta da Terra” no Brasil, documento mundial que formula as bases éticas para uma nova interação humana no planeta, em equilíbrio social e ambiental.
Hoje, é um dos principais líderes do empreendedorismo socioambiental no país. Integra iniciativas como o Movimento Nossa São Paulo, RAPS, IDS, IBGC e Rede Cidades Sustentáveis, entre outros.Atualmente é presidente do Conselho Deliberativo do Instituto Ethos, onde coordena o Movimento Empresarial de Integridade e Combate à Corrupção e do IDS – Instituto Democracia e Sustentabilidade.