Hoje é o Dia da Consciência Negra e paramos para refletir sobre a expressiva desigualdade racial ainda presente, que obriga a população negra a buscar diferentes meios de subsistência através do empreendedorismo. Porém, esses empreendedores encontram muitas barreiras como dificuldade de acesso a crédito, a maquinário, a tecnologia.
Para mudar essa realidade, é preciso pensar em políticas públicas, educação financeira, quebra de vieses e diversas outras intervenções. Devemos também compartilhar conhecimentos e garantir que trajetórias inspiradoras de empreendedorismo negro possam ser seguidas por outros. Confira alguns dados e depoimentos de empreendedores acelerados pelo Quintessa.
Jorge Júnior – Trampay
“Empreender e exercer um papel de liderança sendo negro tem suas peculiaridades. Cansei de ver situações que fomos tratados com indiferença, eu e meu sócio, como se estivéssemos pedindo um favor quando não era. Já cheguei a fazer calls preferindo que a câmera ficasse fechada para que o outro não deslegitimasse a seriedade do que eu estava tratando.
Em uma ligação com um possível investidor, famoso até, fomos tratados de uma forma que eu cheguei até achar que erro era comigo. Quando terminamos, meu sócio me disse: ‘isso nunca aconteceria se tivéssemos um perfil padrão’.
Não temos um perfil padrão e isso não nos desqualifica, pelo contrário, qualifica. Negócio é negócio, não é favor. Situações como essa podem ainda acontecer, mas não precisamos nos diminuir para caber na forma de quem tem olhos, mas não vê.”
Tamila dos Santos – Afroimpacto
Eu sou a Tamila dos Santos, tenho 30 anos, sou de Salvador, formada em assistência social e gestão de inovação social. Venho trabalhando com diversidade há mais ou menos 10 anos e sempre gostei muito de me envolver com questões sociais de maneira geral. Já trabalhei na secretaria de políticas para igualdade racial, em diversos projetos de igualdade, então trabalhar com raça é algo que me toca muito. Tudo isso está muito relacionado a minha origem, venho de uma comunidade simples, minha família veio de um bairro periférico de Salvador e nesse processo nenhum deles teve acesso ao ensino superior. Na verdade, na minha família como um todo dá pra contar na mão aqueles que tiveram acesso ao ensino superior e eu fui a primeira a acessar o ensino superior público. Então a gente tinha esse contexto de falta de acesso, com recortes de raça e socioeconômicos que fez com que eu me envolvesse mais com questões raciais. Entrei na faculdade já com essa perspectiva de ter um viés mais político, que ao longo da graduação só fez crescer, e fez com que eu agisse em prol das questões raciais voltadas para raça e diversidade.
Eu comecei a trabalhar com empreendedorismo depois da pós graduação em inovação social, trabalhei em uma startup social e também em uma aceleradora de startups. Foi a partir desse momento que eu me aproximei um pouco mais desse cenário de empreendedorismo, antes não conhecia nada. Virei líder de eventos e comecei a trabalhar com eventos de empreendedorismo, propiciando espaço para outros empreendedores se desenvolverem. Com o tempo eu virei líder de educação empreendedora, trabalhando com conteúdo no tema e criando trilhas educacionais para empreendedores, sai e comecei a prestar consultoria para projetos sociais, principalmente de base periférica. Foi quando comecei a ouvir das pessoas que eu atendia que elas não se sentiam representadas por consultores não negros, então tinham várias questões (a pessoa falava coisas que as faziam se sentir depreciadas ou porque as pessoas falavam coisas que as faziam sentir subalternas…) então eu ouvia muitos feedbacks nesse sentido, de pessoas que tinham deixado de empreender ou que tinham saído do projeto por conta dessas sensações incomodas. Isso fez com que eu percebesse que talvez fosse importante eu abrir uma empresa de consultoria especifica para empreendedores negros. Foi quando eu montei uma empresa, uma base, já tinha pensado em vários tipos de negócios e consegui passar na incubação do Pense Grande da Aliança Empreendedora e financiado pela Fundação Telefônica Vivo. Lá passamos por um processo de incubação das nossas ideias e recebíamos um capital semente, foi ai que nasceu a Afroimpacto. A partir do Pense Grande eu comecei a testar modelos de MVP e colocar a cara na rua, projetar a Afroimpacto pro mundo e no começo foi bem difícil, já tinha inclusive a perspectiva de ser um trabalho totalmente remoto (muito antes da pandemia). Então foi difícil porque era um empreendimento com pouco recurso, de uma mulher negra, que trabalhava com educação e principalmente porque era um empreendimento que trazia uma proposta nova, eu esbarrei em várias dificuldades nesse sentido, principalmente de pessoas que não acreditavam no potencial do meu negócio.
Com o tempo eu aprendi um pouco mais sobre como as coisas se desenvolviam, eu testei modelos de negócio, cheguei em um modelo B2B, que conta principalmente com treinamentos corporativos – hoje eu faço muitos, tanto para empresas quanto para os projetos das empresas, diretamente para os beneficiários. Isso fez com que a minha empresa fosse alcançando outros patamares, fosse conseguindo galgar outros espaços. Para mim uma das maiores dificuldades desse processo foi o descrédito, eu percebo muito o quanto se descredibiliza meu trabalho por diversas questões, por trabalhar com questões raciais, por ser uma mulher a frente de um negócio, por ser uma mulher negra a frente de um negócio que fala de educação. Então eu já passei por situações muito incômodas, principalmente em relação a precificação, de não pagarem o valor que eu acredito que o meu trabalho vale no mercado, inclusive hoje isso é algo que ainda acontece. Já passei por situações de empregadores me pedirem uma demanda e quando começo a trabalhar ser outra, pessoas perguntando se deviam de fato pagar pelo meu trabalho ou porque não faço o meu trabalho totalmente de graça. Enfim, existem diversas questões que fazem com que esse cotidiano empreendedor seja difícil! Ao mesmo tempos que no plano pessoal também é complicado né, é difícil fazer com que as pessoas do seu eixo familiar entendam que você não trabalha de carteira assinada, que tem a sua própria empresa, que tem as suas próprias metas, isso porque elas vem de outra realidade, de outro momento. E existe também uma coisa de adaptar a realidade da sua casa a esse trabalho. Todos esses foram desafios muito sérios e muito conflitantes na minha trajetória.
E por fim, minha relação com o ativismo dentro do empreendedorismo vem muito desse lugar de se perder o medo de falar de raça e empreendedorismo, até porque a gente tem um número muito grande empreendedores negros, uma maioria negra que empreende. Esse empreendedorismo negro vem muitas vezes por necessidade, por não ter acesso a outras oportunidades e não necessariamente porque quer empreender. Então se fala muito sobre o empreendedorismo de maneira endeusada, como se fosse incrível e mágico, mas tem uma realidade de pessoas que tem experiências muito conflitantes, ansiosas e ruins ao empreender e a gente precisa falar sobre isso. A gente precisa tirar essa neutralidade do empreendedorismo porque nada é neutro e nada é meritocrático, meu ativismo dentro dessa perspectiva vem muito desse lugar, de ter a minha realidade e de entender que as realidades são diversas. Mas meu ativismo vem, principalmente, para fazer com que a imagem do empreendedor, empreendedora não seja mais uma imagem padrão, e sim uma imagem que tenha a minha cara e a cara de várias outras pessoas brasileiras.
Alan Almeida – Parças
“A {Parças} nasceu em 2017 com a missão de dar um futuro digno para egressos do sistema penitenciário e moradores da periferia e ao mesmo tempo entregar talentos altamente qualificados para o mercado de tecnologia da informação. Ao longo dos anos passamos por uma série de provações. Em termos de impacto, foi necessário nos adaptar para criar um vínculo de confiança com os alunos, provar para eles que de fato a oportunidade que oferecemos é real e apoiá-los em questões emocionais e pessoais para garantir a formação. Em termos de negócios, enfrentamos barreiras de valorização e aceitação do mercado, gargalos de conhecimento sobre modelo de negócio e empreendedorismo e muita resiliência para continuar de pé depois de tanta luta.
Mas as conquistas foram muito maiores.
Apoiamos centenas de alunos em todas as regiões do país a conseguirem um emprego digno e transformarem a vida deles e de suas famílias. E isso tudo é possível porque temos um time de colaboradores e parceiros que estão profundamente comprometidos em transformar o sistema carcerário brasileiro e formar os melhores talentos para o mercado de TI!”
Marcelo Arruda – Diversidade.io
“Eu comecei a empreender depois de uma carreira corporativa, isso porque não encontrava local que eu pudesse me recolocar. Me deparei com um mercado fechado para mim. Com as rodadas de negócios e eventos de empreendedorismo que eu participava, percebi que quando uma empresa de pequeno porte fazia um vídeo ou apresentação sempre era um único negócio com empreendedor negro entre outros 30, 40 negócios. Aí, junto com um amigo criamos um movimento de afroempreendedorismo, que avançou para a plataforma Diversidade.IO. Hoje a Diversidade.IO utiliza a tecnologia para ajudar na geração de oportunidades para talentos, seja para empreendedores ou para candidatos a oportunidades de emprego. Com tecnologia de ponta a gente consegue gerar visibilidade e também atrair empresas que acreditam na inclusão e na diversidade, e a partir da nossa plataforma essas empresas encontram talentos.
Estamos em um momento muito bacana, onde fazemos um piloto para a AmBev e também uma ação para o Carrefour, onde fomos investidos. Essas duas ações são focadas no afroempreendedorismo e vão ao encontro do nosso objetivo como empresa: Queremos que a maior base de empreendedores no Brasil, que são os negros, tenham oportunidades iguais e a mesma visibilidade perante empresas que podem contratar seus serviços, gerando para eles um ticket melhor. Uma pesquisa de 2015 mostra que um faturamento médio de um afroempreendedor era de R$ 1.370,00, enquanto o de um empreendedor branco era de R$ 2.700,00, essa é a nossa batalha. É criar oportunidades que melhorem o ticket, que dê visibilidade e que capacite os afroempreendedores, dessa forma eles podem continuar crescendo e alcançando os lugares que merecem.”